Escuridão e rutilância

E eis que tive minhas noites brancas. O sonhador, o original, tinha então a mesma idade, vinte e sete. As diferenças foram superficiais, sinais dos tempos, ele pôde sentir a realidade acareada, enquanto em meu caso foi forjada uma trilha remota, por mensagens.

Há dois filmes inspirados em Noites brancas. Um de Luchino Visconti, outro de Robert Bresson. Este encontro de mestres consumados, contudo, a rigor, não gera grande coisa. Ou melhor, são obras inconvenientes, se se foca no cerne da obra de verdade, porque é um estado de sentir com peso de perpetuidade amaldiçoada e velada, e tem de tenacidade e inflexão quanto tem de fragilidade.

Noites brancas. Na verdade, talvez as diferenças tenham sido maiores. Não, emendo: simplesmente não parei para notar as noites, não olhei o céu, apenas prosseguia com os movimentos cotidianos. Mas ao mesmo tempo havia, podia sentir, uma atmosfera diferente e que me era nova. E, entre longos e espaçados intervalos de angústia e ansiedade, de caminhar sem propósito, vivi noites brancas. 

No tombar do momento em que pude avistar, do subsolo, a luz, se formou o patético de um milagre natimorto. O devanear de sempre já não pode ser, e o que eram longos e espaçados intervalos passam a ser uma planície árida e sem horizonte, talvez não de todo desconhecida há muito, mas agora a ter outro peso. 

Era mais um fim de carnaval. No trabalho, havia expectativa de mudança de prédio, de mudança de minha posição também. Quanto ao local e prédio novos, um aborrecimento, sem dúvida, afinal implicaria mudança no errar diário entre e pela cidade, ainda assim, um aborrecimento contornável. Quanto ao cargo, a mudança me traria, sem dúvida, um pouco de sossego, embora o futuro ainda fosse uma imagem dentro da angústia fermentada. Seja como for, essas mudanças não tinham nada de especial. Até que comecei a conversar com uma mulher. Tinha ela a mesma idade que eu, vivia na mesma cidade, trabalhava mais ou menos na mesma área, sua trajetória até ali se parecia, morava também com a avó, confessava incertezas em relação ao futuro. A princípio, aquilo se deu de maneira um tanto banal, feito uma bravata qualquer. Depois de uma semana de conversa esquecida por dias, começaram as noites brancas.

E conversamos diariamente por duas semanas, ela respondia no dia seguinte ou no período seguinte, eu sentia o quanto essa troca, sem um porquê, transcorria de maneira franca, humana e sensível, não como um jogo. A um só tempo de maneira franca, humana e sensível e sem um porquê pois eu não podia ignorar o contexto de tudo aquilo, e via a sua imagem, se remexiam em mim sentimentos contraditórios. Ela tinha um sorriso largo, o semblante exprimia saúde, desembaraço, alegria e vitalidade. Quando não estava a sorrir, podia ser observado, nos gestos da boca, mãos e olhos, para além de seus traços retos, finos e delicados e de seu busto levemente salpicado, o desenhar de certa bravura.

Muito dissemos um ao outro. De minha parte busquei depurar minhas falas da incontornável tendência de literato, e embora aquilo não transcorresse como um jogo, não deixava de me causar inquietação, por seu caráter irreal, e por isso provavelmente em minhas palavras havia um excesso inconveniente de pensar consciencioso. 

Ela me disse que não abandonaria jamais a avó e que o mundo odeia idosos. Ela me disse que preferia caminhar, ouvindo as vozes da própria cabeça, a entrar no ambiente de academia. Ela me disse que gostava de ver a vida acontecendo. Ela me disse que relógio era somente para ver as horas. Ela me disse ver coisas boas feitas que melhoraram a cidade, como a reforma da biblioteca municipal, parques, o borboletário. Ela me disse o quanto desgostava das concessões e privatizações do que era público. Ela me disse o quanto acompanhava esportes. Ela me disse que, se tivesse me conhecido antes, iria rir de mim pelo rebaixamento do Santos. Ela me contou em linhas gerais a sua trajetória até ali. Certa vez, ela me pediu desculpas pelo sumiço de um dia, citou vagamente problemas pessoais, citou a correria cotidiana. Na noite final, ela pronunciou meu nome, emitindo o som do c.

E ela me respondeu certas vezes justamente quando eu estava nos momentos mais angustiantes em meio aos lapsos, e em todas as vezes seu retorno era uma boa nova, embora significasse também que, dali a pouco, haveria de enfrentar novamente o vazio, com suas especulações sempre tão severas.

Minhas noites brancas foram uma azáfama de sentimentos contraditórios, é verdade, mas com a vida suspensa, flutuante sobre o cinza diário. Estalou de maneira violenta a percepção de que tudo acabava por se desviar, cair na estupidez vulgar de tudo o mais, mas já não era pela voz daquelas noites brancas.

Há muito buscava dissimular, escapar dos encadeamentos cinzas diários da realidade, inspirado pela reminiscência da grandeza, do sublime. De início, me inquietava sentir o alcance e expressão de uma sonata para piano tardia de Beethoven, de uma sinfonia como a Júpiter de Mozart, sua grandeza, sua perfeição, enquanto tudo o mais era tão acanhado, vulgar, sem acabamento algum. Depois, sentia que aquela grandeza não é fruto de confrontação, tampouco de fuga, mas justamente assim se transformou pela própria grandeza do que é viver, superando a vida pela vida. O altar da arte, o sacrifício, a transformação, seja como for, talvez no fundo esta grandeza me assuste, e me abandono entre a entrega abnegada e a letargia.

Enquanto isso, ocorreu a mudança de prédio do trabalho, a nomeação para o cargo, porém, não, foi sinalizado que, após um mês de férias, viria a ocorrer, no prédio novo do serviço, fico no décimo terceiro andar, me habituei logo a subir até lá pelas escadas, no outro prédio, as escadas eram esguias, povoadas de gente, ia em pouco tempo do térreo ao quinto, agora, há um espaço bem largo, alto, vazio, opaco, silencioso, com resquícios de pó de construção, não faço tanto esforço, não canso, não demoro demasiadamente e, quando vejo o papel colocado na parede a indicar meu andar, genuinamente desejo continuar a subir, sem propósito algum, sem fecho, no horário de almoço, ando sem destino, a cabeça vazia, em minha mesa, em frente à tela, também retorço o vazio. Vieram então as férias.

Acídia

Me aplico, de maneira diligente e tenaz, ao trabalho, ou melhor, aos desdobramentos replicáveis e cotidianos de ocupação: levantar, exasperar pela pontualidade, revisar à exaustão as tarefas, antes de sua efetiva submissão. Me inclino, com paciência de boi, a proceder e repisar o quanto for solicitado, maquinalmente que seja, me abrir ao compromisso de me portar útil. Não que me sinta, no contexto de trabalho, insubstituível ou transformador. Não aquilato ação, isto é, o que me é demandado pode ser um completo absurdo, assim como sua execução; é absurdo pedir para que se pule da janela, mas isto é feito de peito convicto. Minha impressão é que, ainda assim, sou muito falho e incompleto e que, no que entrego, sempre há rastro de imperfeição, sempre se esgueira sorrateiramente algum erro. E em todo encontro, em toda troca banal de palavras com algum colega, falta um dizer, falta um sentimento não posto à luz, resta algo sem encaixe.

Tenho meu limite. Tal dedicação não reside em algum tipo de lisonja, esperança, anseio ou ambição. E mesmo que busque, de certa forma, camuflar na pele da competência e da resolutividade, esta conduta não é nada senão miragem. Igualmente, não tomo o trabalho como um jardim a ser cultivado. No fundo, sei que não vale a pena. Meu limite estala na percepção, de premissa, alienada, inteiramente. A um só tempo, sem orgulho, parto da alienação e não acredito na liberdade: a rigor, não acredito que exista solução, nem vejo o porquê de todo esse movimento e inquietação diária. Talvez não exista obra da qual sentir vergonha, desdém e orgulho. Talvez restem apenas o cansaço e a antecipação um tanto que angustiante, no caminhar pelo cinza urbano e pelas portas e escadas do transporte público, do irromper inútil do desejo, a oprimir a consciência.

O dizer sim ou não à vida é implacável, arrasta de maneira inteira tudo que é da vida. Não só a razão, na frieza do pensamento, não só a emoção, só os desejos, só os aspectos da vida circense em sociedade. Sim, tudo isto, ou melhor: não a tudo isto! Se há um pedaço ausente, a vida como que se envenena. 

Mas há quem diga sim, apesar de tudo, e cuja vocação e entrega me comovem, e sinto em mim o medrar de uma corrente generosa de admiração e querer bem. Talvez seja uma forma de manifestação de amor, com os incrementos outrora perdidos das dimensões amorosas outras. De todo modo, a afeição profícua vacila ante a aparição de certo rancor e ressentimento, e passa a existir uma distância incontornável entre nós. E assim, passo a odiar o que era então tão querido, a querer ruptura, até desejando ferir com meu desprezo. Dizem, tão cheios de razão, que ela, Rachel, encontra, no trabalho, uma fuga; dizem que o trabalho é para ela uma fonte, um meio para encontrar forças. Tolice. Caso se se sentir de fato necessidade de examinar, de dar um veredito a respeito de uma figura desta altura, se deve também não falar em termos tão displicentes. Me limito apenas ao seguinte: Rachel possui uma grandeza própria e anterior, e o trabalho não é uma faceta alheia e segmentada de sua vida: quem é grande não se divide, dizer sim é ser em tudo. No lugar da displicência, talvez em falso sinal de solenidade, busquei em sua grandeza o cultivo de uma vaga e majestosa inspiração; busquei em suas virtudes raras um abrigo, e talvez fosse de minha parte uma intromissão descabida me imiscuir em sua vida, para além da superficialidade cinza da rotina e ocupação. E assim, ao respirar tudo isto, padeço de uma grande tristeza: construí uma figura irreal e intangível — se nota em seu olhar uma placidez distante e profunda; se sente em sua expressão o faiscar de algo interdito em termos imediatos, e o que se tem, na superfície, é a manifestação de toda sua dedicação e do seu sim à vida, quase a beirar a loucura, a exasperação. E então a odeio, desejo transparecer meu despeito, e existem uma fissura, uma distância e, por conseguinte, uma necessidade de se estar longe, sem memórias. Disponho, neste ponto, de um artifício socialmente conveniente: os turbilhões internos trabalham subterraneamente, como sempre, e assim acredito não poder ofender alguém tão raro e especial, por sentir veladamente, e por mais que esteja aborrecido e angustiado, minha afeição por ela — a qual fiz questão de exprimir sempre que possível, apaixonadamente — se mantém protegida nas aparências sociais, mas, no fundo, acredito que não caminho desembaraçado, a hesitação erigida pelo sofrimento cria um ambiente sentimental pantanoso; se sinto repulsa à mera cogitação de transparecer o desprezo, também me finco ao desejo de distância e esquecimento. Mas, contemos a história do Gênesis.

No limiar da consciência, parecia já me sentir inclinado, incontornavelmente, para a solidão e ruminar do espírito. Por óbvio, não é um entendimento linear e sem estilhaços ásperos, tampouco se trata de mera recusa ou aceitação, e se hesita, nos descaminhos, idas e retornos da vontade, até que se percebe afinal o quanto o ser assim se direcionou e, de maneira inflexível, desprezou os desejos de mudança volúveis e respectivos sofrimentos contíguos a estes mesmos desejos, quando tombados.

Em minha primeira experiência de trabalho, experimentava a angústia e também o desejo de não ser corrompido pelos maus hábitos e vícios, tão abundantemente escancarados por todos os cantos, e a um só tempo, com sensibilidade aguçada, percebia a manifestação de tais hábitos nos outros, os reconhecia como ruins, antípodas ao que idealizava, e sentia a introjeção tímida disto em mim, como se entrasse também no rumo da decadência, como se derramasse o que poderia haver de fundamental em mim. Me concebia diferente, e isto me exigia transitar entre a nostalgia, a negação e a dúvida. 

Durante o período universitário, se armou um patético e tortuoso caminho para que conseguisse um mero estágio. Me restava me apartar no ofício acadêmico, em termos práticos. Nas entrevistas de processos seletivos, sentia sempre o peso de uma penumbra mentirosa, de uma atmosfera farsesca. E é uma mentira diferente da de hoje, aquela me era insuportável e totalmente dispensável. Lá, as palavras ficavam suspensas no ar, tinham o sentido trocado. Percebia alguns de meus colegas a arranjar a carreira de maneira astuta e desenrolada, a cavar deliberadamente frutos futuros. Uns marotos! Se entregavam ao construir deste edifício de maneira natural, a insinuar veladamente a posse do mapa do caminho. Para estes marotos havia o momento de especialização técnica, bem como o do êxtase do prazer, sem que este atrapalhasse a resolução daquele. 

Minha perspectiva era a de um vale nu e poeirento, letárgico, uniforme. Havia o momento de especialização, mas a formação genuína se deu no fermentar espiritual das noites cálidas e do final de semana, pela literatura.

Era muito competente nas matérias — me forjei um trabalhador operário acadêmico –, e a medida de minha entrega correspondia ao afiado desprezo por este ofício. Os textos apinhados de referências e notas de rodapé eram lidos de maneira diligente, enquanto não os respeitava. Hoje, me pergunto se no ambiente acadêmico moderno, caracterizado que é pelo proselitismo e especialização extrema equivalente a de grandes corporações capitalistas — me pergunto se neste ofício é o bastante apenas fazer, ou se deve também acreditar. E assim, ponho em dúvida minha competência enquanto operário da ciência. De todo modo, este quadro patético, durante os cinco anos, não era de todo ruim e desconfortável, podia até dissimular a pobreza de vida com o amor à arte, com errâncias incertas pela cidade.

Na metade final da graduação, me inseri na primeira repartição, como estagiário, em que já incorria na tenacidade da aplicação prestativa e inteiramente entregue, e depois de tanta dificuldade para conseguir algo, pouco que fosse, mero elogio a mim endereçado parecia uma dádiva imerecida, a transbordar uma pressão, de modo que, a partir dali, não pudesse errar jamais. Sentia que todas as trocas e conversas se encetavam de maneira artificial e travada, sempre havia um sabor patético — mesmo se fosse dia, a opacidade do céu sugeria noite. Havia um professor de história, dado à literatura. No almoço, acompanhava a chefe enquanto preparava o cachimbo, o semblante limpo, bem humorado e sóbrio a denotar certa vitalidade de ação. Certa vez, no elevador, a uma colega comentava ele que finalmente lera, nas últimas férias, Educação Sentimental. Quase que instintivamente, lamentava que ele não soubesse que poderia ter em mim um companheiro de conversa sofisticada — a colega certamente não se importava com Flaubert –, nem que em minha bolsa carregava o primeiro volume de Fausto — provável que teria ele uma opinião engenhosa sobre a obra, inspiradora, a conter, inclusive, paralelo, muito bem burilado, ao governo contemporâneo no Brasil. Seja como for, não se saia daquele sabor geral patético, fortuito e impessoal. Ah, como essas distrações buscam alienar o alienado de sua escravidão! Ao diabo os gostos comuns!… a literatura é, para mim, sobretudo um destino solitário.

Claro, já então sentia como as coisas transcorrem estupida e indiferentemente. Estourou a pandemia, lá estava novamente o cenário desolador da falta de perspectiva. O que me salvou foi escrever. Sem traquejo para as encenações da prática e da arquitetura de belas trajetórias, na escrita posso.

No ambiente atual de trabalho, sinto que me querem bem, sinto certo carinho, os temas objetos do trabalho entusiasmam, tem até um caso de gostos comuns… Recebo tudo igualmente como se nada merecesse, e ao mesmo tempo me ofendem os estilhaços advindos do desarranjo primevo; acho tudo isto uma causa perdida, e não posso deixar a negação e a descrença. Ainda assim, reapareceu até o velho dizer segundo o que tenho um futuro brilhante e que posso mais. Aqui, emendo: sim, talvez, posso, até que poderia — mas, para quê?

Notas de cinema

A rigor, prefiro a obra de Robert Bresson a de Ingmar Bergman.

Reconheço a força dramática de Ingmar Bergman, estimo a transposição do grande teatro para o cinema, aquelas atrizes e atores clássicos, a fotografia de Sven Nykvist.

Porém, ainda me inclino para a obra de Robert Bresson, unicamente por tê-la gerado desgarrada de tudo. Sinto isto no ressoar obstinado de passos dos personagens, seja em banal subir de escada, seja em errâncias por corredores, com ruídos de correntes, chaves e algemas — acima de tudo, nas expressões cruas e secas dos personagens. É difícil presenciar um grito, choro. O desespero, o engendramento do mal e a angústia são latentes, distantes. Em muitos casos não se faz questão do desfecho. Um dos filmes, por exemplo, fixa o desfecho no próprio título.

E então sinto que Robert Bresson, de certo modo, concebe inversamente sua obra, quando comparada a de Bergman, porque parte do prosaico desdobrado em devastação, do concreto, da nudez, dos desesperos surdos do cotidiano e da vida entre homens, no mundo, e abre arco para a fé, para o transcendental, sutilmente, sem pregação.

Seja como for, que espetáculo patético, o do ser humano.

Destaco com grande reverência e quase espanto a atmosfera expressiva, coesão e senso de continuidade de O Mensageiro do Diabo (1955) e de Onibaba (1964), cada qual à sua maneira. Na verdade, eis duas obras a atestar a força autônoma expressiva do cinema, como uma música, isto é, boa por si só, avulsa, dispensando até, talvez, palavras. 

Por fim, que dizer de Yasujirô Ozu? Sinto que aqui se tem tudo, e não é como se tivéssemos que adentrar numa gruta rombuda, apertar por entre as mãos espinhos, o sangue a escorrer, para só então respirarmos ar puro. 

Talvez o grande mote de suas obras seja o da intimidade. Isto feito de maneira sensível, e então se passa por recintos de família, conversação contida em bares depois do expediente, quando não temperada pela embriaguez, reuniões familiares ou entre amigos do passado, a rememorar, a dissidir, a pôr em perspectiva uma mudança para o futuro, a tramar algum plano alcoviteiro. 

Diria que Começo de Primavera (1956) é o que representa melhor o que Natalia Ginzburg tratou de maneira minuciosa como o problema das relações humanas: preocupação da subsistência vindoura, os problemas do trabalho, aposentadoria, transporte coletivo, rotina, a agitação urbana, a falta de tempo, a angústia e desejo de mudar a própria vida, o tempo dos outros, o amor, a morte. Aqui se tem tudo, repito.

Adeus

i. Do discurso da culpa:

— Sim, não nego, eis uma cadência ensimesmada, tediosa e fleumática. Pode denotar outras coisas inglórias. Do lado filosófico, repiso exausto a questão do que é fechado, a associação disto com o caráter do que é demoníaco. Mas, só. De minha parte, o terrível do demoníaco é a crueldade diante do outro, é o massacre, o sangue deliberado, a violência, o escárnio, a humilhação. A acídia, por seu lado, é mero pântano de luz opaca, não hostil a insetos mesquinhos, leito fértil de toda sorte de vida insignificante. E não me imagino transfigurado, as próprias mãos a erigir uma diferente vida. Tanto em termos práticos quanto em termos intelectuais, de nada me servem aquelas belas lições de mestre salpicadas em Grande Sertão: Veredas.

ii. E eis o chacal de olhar arguto. Mas, principalmente, o discurso de ponta afiada, lacônica, o raciocínio abruptamente inteligente:

[Seu aspecto denota certo desleixo, desleixo talvez calculado, à espreita de algo. As mechas loiras dispostas caoticamente e a barba desalinhada compunham beleza selvagem e desarmônica, conjunto a um só tempo sedutor e espirituoso.] – Saiba: você é o único amigo que tenho. Por isto, não pode acidente ceifar a sua vida. Sinto de longe este viver acanhado, sim. E se a fortuna assim permitisse, tomaria a mim o que perdeu.

[Deu que, em uma noite, lá estava a florescer com linhas e cabelos uniformes, aspecto delgado, de beleza harmônica e domesticada.] — Tenho provado do elixir esplendoroso do prazer. Delírios da vida frenética: todo este movimento me cansa o corpo, é verdade. Mas, estou feliz.

iii. A noite era então uma fumaça. Quis ele prolongar o patético espetáculo, e cada detalhe minuciosamente narrado me espicaçava. De repente, senti que tinha ele tendência a ser, agora, prolixo.

Automóveis, mecânicos transeuntes, lojas fechadas, em certos corredores se insinuava iluminação vulgar colorida, provavelmente de prostíbulo.

No tombar da noite, em especial às sextas, paira no espaço atmosfera de despedida. As lojas fecham a persiana, as calçadas de bares se apinham de gente, pelo menos as preocupações cotidianas se amainam um pouco, com o alívio do opresso cotidiano do dia útil, quando não liberado espaço para toda sorte de prazer e delícia.

Antes, as primeiras variações falavam da falta de traquejo, da timidez, e a existência era largada, quase por revolta. Se confidenciava. E os aborrecimentos nos eram espelhados. De repente, os contornos se definiam, e pulsava o florescer de uma forma bela, brilhante. Mantinha-se o mote da face amiga, os abraços e carinhos bem humorados, gracejos, ditos irrepreensíveis, absurdos que fossem. Em suma, amizade, um estar ainda muito aprazível. 

A rigor, o discurso da eloquência retrata uma banalidade. Por que obsedaria? Seja como for, não valem a pena as voltas infindáveis, o giro fraterno não eram senão variações de algo que, de premissa, não pode ser. À face de certa variação se estala a consciência da impossibilidade.  

Afinal então o silêncio já era bem mais pesado do que o que se tinha a dizer. E o ar noturno não abrigava sentimento inebriante de aventura, tampouco estar desembaraçado. Era simplesmente fumaça. Buscava somente fugir, ignorar por completo a existência de toda aquela armação circense. Encerrar a própria persiana, mergulhar na pausa como se fosse no vazio do fim.

Juro não saber se adeus em alemão, em francês ou em português tem dimensão, peso diferente.

Dentro do adeus não sinto o descortinar de drama ou a solenidade de discursos e de justificativas. Apenas rememoro dia em que o entardecer subia preguiçoso, o ar verde revigorava o peito, havia a estimulante possibilidade de se deparar com riachos e berços da natureza, e o corpo cansado não fazia tremer a plena tranquilidade de tudo o mais, a absoluta franqueza e estima recíproca, o sorriso sem sombra.

Rachel

Cada um reluz naquilo em que se esforça,

ocupando-se com isso a maior parte do dia,

onde ele seja superior a si mesmo.

— Eurípides.

Rachel, peço licença para cometer este ato antiquado de lhe escrever. Afinal não há distância de estados e países entre nós, nem faltam meios virtuais de mensagens instantâneas. Para piorar, como pode ver, não é algo feito à mão, e sim forjado nesta folha impressa comum, corriqueira, de traços impessoais e frios.

Seja como for, devo dizer que tenho absoluta inabilidade em coisas práticas e concretas. Busco apenas proceder com seriedade e tentar sobreviver. As letras me são desde sempre fundamentais. Sei que escrever me salvou em termos de sobrevivência material, ao evitar o absoluto fracasso nas coisas da vida. Contudo, a rigor, não tenho tal propósito, de triunfo. Pois sinto que o ofício da expressão é o único que me cabe, em tudo. 

Posso integrar ao sopro ondulante da vida uma seiva expressiva ao prover de ponta a ponta, do começo ao fim, os contornos, ao moldar as justezas e meandros das palavras, ao tecer com os dedos repassados de pó cada curva, entreato e suspiro. E assim, só pela escrita conseguiria exprimir algo digno do que você representa, Rachel.

ooOoo

Já me perguntei diversas vezes como você consegue ser tão boa, como consegue, mesmo nos cantos mais inóspitos e áridos, espalhar tanta inteligência refrescante, tal como se chamasse à luz o que há de melhor e mais inteligente em cada um; não é de forma alguma aquela sabedoria que para se destacar precisa subir por sobre os ombros da mediocridade; tampouco aquela sabedoria que confunde grandeza com soberba altivez. A sua sabedoria, Rachel, reside na generosidade e se distingue não em termos de política, diplomacia, hierarquia, posição ou cargo, mas em termos de virtude pura. 

Você me instiga a voltar a acreditar na possibilidade do valor em si das coisas. E assim, certas coisas seriam intrinsecamente virtuosas. Confesso que, mesmo quando corriam dias sem que nós nos falássemos, ver através do vidro que você estava presente, em sua mesa, me fazia perceber o ambiente de maneira diferente, como se o salão com você tivesse mais ar, por conta desta sua virtude tão generosa.  

Só se mantêm alheias à sua energia as pessoas há muito petrificadas pela indiferença. Convidando os demais a serem melhores, só assim talvez todos os outros possam de alguma forma ensaiar em si esta virtude que é própria a você. 

E então, ao sentir isso, não me pergunto mais o porquê de você ser tão boa, passo apenas a reconhecer e admirar. E a sentir o quanto este tipo de virtude é o que, a rigor, vale a pena nesta vida.

Há a lenda de aprendizes que copiavam exasperadamente os escritos de seus mestres, de modo que, perto da grandeza destes, passassem a ser grandes também. Nossa época, principalmente no âmbito acadêmico, repudia a ideia de inspiração, cópia. De minha parte, não a nego, a cópia, por questionar o mérito, mas pelo fato de que meus gestos de copistas de nada adiantariam, não passariam de mecânica estéril: não há como ser que nem você, Rachel, só teria sido como tu se tivesse sido tu.

Pois bem. Me limito, também, a lhe agradecer, pela companhia, parceria, generosidade, acolhimento, paciência, escuta, sensibilidade.

Não pretendo algum tipo de marca própria, projeto, reputação, glória, palmares etc. A rigor, nada fiz na repartição sem a sua influência direta. Você foi fundamental neste período todo, e se não fosse você estaria ainda mais perdido. E isto me basta.

Sei que você de certa forma, ao estar na repartição, pelas circunstâncias todas, se encontrou em espécie de exílio. Me vem à memória uma frase que me disse certa vez, no carro, sobre tudo, neste mundo, “ser tão superficial”. Sim, esses desdobramentos têm uma cadência em geral mesquinha, grotesca, sem sentido, injusta. 

Nessa linha, Bach escreveu:

“Quando as coisas estão bem, considere que elas podem ficar ruins; e se estão ruins, podem se transformar em boas. Não presuma que as coisas vão caminhar da forma que você quer. Aquele que se preocupa em fazer as coisas serem da maneira que quer só terá tristeza, desassossego e dor no coração”; “aprenda a conhecer o mundo. Você não vai transformá-lo, ele não vai evoluir de acordo com você. Acima de todas as coisas aprenda e saiba que o mundo é ingrato”; “o que é esse mundo senão um grande espinho que temos de remover nós mesmos? Esta terra é o reino do diabo”.

Demoníaco ou angústia diante do bem

I. Gosto de uma coluna de Manuel Bandeira em que ele fala da origem de seus traços faciais, o nariz a remeter ao pai, a boca, à mãe. Por outro lado, já me é um pouco complicada aquela ligação familiar de Lavoura Arcaica, a tratar da história da família como que dividida em raízes de árvores diferentes, e então haveria o lado da mãe e o do pai, forças quase que espirituais e a contornar tendências e ações dos galhos nascidos, e então o desenrolar grotesco todo acaba caindo por sobre as costas da mãe, suposto ventre de inclinação malsã. Ninguém negaria a força do temperamento e humor herdada, mas aquilo me soa forma de se eximir da responsabilidade pelas rédeas da própria vida, porque a rigor a espada a pender sobre cada um não tem par.   

Meu pai, quando trabalhava de motorista de ônibus, ganhou a alcunha de “zangado”, personagem do desenho. Eis que seria fácil apontar aqui, pois, o tal do atavismo, o que, contudo, não para de pé. Meu pai tem a alma simples, em que se incute estreito contentamento, e, incomodado este, esfumaça aborrecimento rombudo.  Da mesma forma, fora os traços exteriores, não me reconheço em minha mãe.

Nietzsche chegou a desprezar sua origem, tanto germânica quanto familiar, inventando ligação que teria com a Polônia… De minha parte, minha pátria é o país onde não estou. Não busco atavismo tal qual buscasse o que melhor fosse me apetecer segundo a perspectiva do que me tornei. 

II. Erguer-se pelos próprios cabelos. A um só tempo bater o escanteio e cabecear a bola. E me atino que não foi o bastante, olho ao redor, sinto o espaço, repiso o estar cotidiano — certamente me imiscuí, estou num lugar que me é distante; distante não em termos de progresso ou conquista, mas sim porque percebo incontornável desconchavo crônico, algo que jamais pode se encaixar completamente. Para que se erguer novamente? A inquietação e esperanças de todos os dias tiram todos os dias de seu lugar, o tato como que serpenteia aéreo, perdido, e a paleta, catálogo de ações, dos assuntos, febres e modas, dos hábitos e vícios, bem como sua negação, formam espessa água em que perpasso superficialmente, tépida apenas e não suficiente para abrigar. 

III. Pórtico majestoso para os heróis, canapé, céu e mar amplos: a grande aventura. Odisseia, não importa a variedade em meio aos estendais de traduções, transmitida às idades, transportando a glória passada. Tempo de ação. Até mesmo o cachorro de Ulisses é um artifício de eternidade.

III. Observo bem os vitrais de tal castelo erigido no ar. Sentir e buscar transportar a grandeza sem ser grande.

III. A grande aventura. Desencontros de uma coisa complicada, privação, ímpeto sanguíneo, contornos de silhuetas femininas, cintura, beleza formosa que promete felicidade, toda ternura do carinho, toda sorte de delícias, também delírio, exasperação, código íntimo e velado de palavras de namorados, gracejos, compreensão e antecipação do outro, receituário das boas práticas, ditos populares, caça, conquista e encontros fugazes e fulgurantes: o êxtase.

O tribalismo do sexo aludido por Rilke — sim, no mesmo terreno da apologia da solidão, longe dos ruídos e batidas de relógios da cidade, para espécie de apoteose, transcendência, revirar-se, emergir em meio ao pântano, saltar, e surge, pois, Deus –, e há as viagens reais para países vários, o trato agradável e amiúde rodeado por mulheres, uma vida concretamente prazerosa — cada lugar novo visitado certifica um grande poema, para cada amor um aprendizado. 

III. A palavra que vacila, sentida, os contornos de um lábio que a pronuncia repassada de alma, com o peso de uma morte absurda, pórtico de sofrimento de dimensão incomensurável. E a isto jamais linhas e revelações de abóbada altaneira, cuja pintura retrata o engenho da criação divina, por sublime que seja esta, poderão conferir um mínimo de propósito. Com que propósito uma vida tão nova e inocente é ceifada? Não pode haver, mesmo se séculos fossem segundos. Em termos terrenos, certamente escreveram por aí manuais de boas práticas diante do luto. Como tratar em terapia etc. Ou mesmo visões filosóficas sobre a morte. Fórmulas vazias. A palavra se curvou, espreitou-se externamente um pesar que atravessa outros mundos, uma saudade sem redenção concebível. 

IV. Volve-se o bem espicaçado e humilhado, as mãos do assassínio operam o moinho satânico da oficina dos fatos e do cada um por si: a maldade humana e o maníaco destruir contornam a funesta dança.

A rigor, de cá para cá, paira o sentimento de que não vale a pena. Pois bem. O decaimento material, as incertezas e condições concretas ditarão a rotina, rotina esta tenaz e frágil, espetáculo patético de esperança e desânimo, de tentativa e cansaço, de vergonha, dúvida, de sofrimento e conforto, de teimosia e timidez e resistência e colapso.

Carrego a nostalgia e aspirações de uma grandeza perdida e amaldiçoada. Ah, sim, amar, beber e cantar: o esplendor de cenas sobrepostas e mensageiras da plenitude do ser. Amar, beber e cantar. O esplendor. Amar, beber e cantar. Altíssimo criador da vida…

Hamlet ou Ivánov

Em meio aos fragmentos de uma noite ruim, no leito, estala o pensamento de que, de repente, deixarei de ser. Não o identifico enquanto instinto animal a faiscar alerta para a sobrevivência material do corpo. Deixarei de ser, mas não só. O ar, o espaço, as montanhas: nada. Para muito além do arco ao redor de carne e pulsação, eis a completude, a dádiva cujo ocaso não deixa sequer ruínas. Descanso, libertação? Mas, tais estados partem de seu opresso contrário, nada sendo, enfim, se se deixa de ser. O nada anula absolutamente tudo.

Ah, como repetem por aí, quase que mecanicamente, o “ser ou não ser” de Hamlet. Parece até um chiste, uma piada, um jogo de palavras, e não se chega nem a aparentar que todo mundo que o cita evoque de fato o seu real contexto, de irrequieto e sombrio questionamento alusivo ao suicídio. As questões existenciais soam sempre de maneira jocosa, deixadas de lado, tal qual postura quase sempre inadequada ao momento, quando não delegada às mãos especialistas — a partir do que se diz que a terapia está em dia, então tudo certo. E são as questões mais decisivas. 

Lembro-me, pois, daqueles livros de capa dura segundo os quais a alma é irredutível, e das palavras altaneiras, dos desencadeamentos do pensamento sofisticados, costurados por mestres consumados da humanidade e criação. Pululam por aí todo tipo de vulgaridade sobre Deus e fé, e da mesma forma não pode ser que as grosseiras e incultas pregações, as demagogias e mesquinharias terrenas, sob a roupagem de crendice estridente e puída, disponham de algum tipo de simpatia divina. Antes a simplicidade do bem, as pequenas coisas e os seres que conseguem amar plenamente, em meio aos destroços de quem perdeu a vida sem morrer.

Tempo dos outros

Cidade sonhada a um só tempo de um frio quase que tangível e de esmagadora sensação de solidão, o relógio do poste sem os ponteiros, a carruagem de rumo desengonçado. E baixou o dia de fumaça e céu turvo, mensageiros de queimadas pelos cantos amazônicos e perturbações atmosféricas. Certamente circulam fotografias e relatos de tal incidente do dia noite, traçam um cenário assustador. Porém, a rigor, nada espetacular houvera. Embora a sombra se assomasse pelo concreto e frinchas dos edifícios, o céu plúmbeo pesasse, e aquele ar abafado opresso na garganta, tudo se desdobrava banalmente, cumpriam-se obrigações, horários, marcava-se a presença, a vontade ainda pulsava. É um cotidiano familiar, com incerto e pouco contorno de diferença de espaço e sentimento, tal qual quando estoura uma chacina, ou mesmo boatos de furtos coletivos, e pode ser até que as ruas fiquem mais furtivas, vazias, que os transeuntes vacilem, olhem desconfiados para todos os lados, rumem à lotação em grupo, um suspiro por esquina ou reminiscência. Dias do cotidiano, repetidos até que de repente ocorre algo, incontornavelmente em vestes banais. A cidade amiúde reproduz dias cinzas, basta percebê-los. Os desdobramentos da ação podem dar em espetáculo patético, maus pensamentos e amargor fermentam, toda sorte de ingratidão e abandono, mas esta mixórdia de sonho e concreto também toca vontade de grandeza, até a morte. 

Voz divina entre ruínas

Certa vez o Professor me disse que aquele meu estágio infortúnio era, apesar de tudo, um aprendizado. Disse a ele que preferiria aprender lendo Hegel, ao que se rendeu, abriu os braços e riu. 

Talvez nada além de bazófia, afinal passava semanas em meio aos livros, na biblioteca, depois em casa, de maneira austera, e nisto me inquietava a completa ausência de vida. 

Por outro lado, o outro, o professor, ao perceber certo despeito meu à academia, acudiu que o mercado era bem pior. E ouço então este apelo à proatividade, à resolução, a conversa técnica e estrita, vivo as hierarquias — sinto que não há saída. 

Este desassossego uno ecoa da teimosia envolvida no viver. Não me reconheço nestes vitrais exuberantes, nos mosaicos engenhosos em seu decaimento, na iminência de novo elixir do gozo, nos horizontes límpidos do futuro. A ação me é totalmente prescindível. Gostava de erguer a barriga para cima, esperar a eternidade.

O mundo é a oficina do diabo. Não adianta querer mudá-lo, exasperar-se diante do mal, da ingratidão e da doença. Mas, por ser justamente desencadeamento frio e implacável, o futuro se projeta taciturno e desolador.

Graciliano escreveu que, no lugar de volver a barriga para cima e esperar a eternidade, devia escrever sua obra. Fê-lo. A última obra. Sem fecho: o cárcere já havia sido escrito, e ele já perambulava pelas ruas, porém não houve propriamente um final. Viera-lhe a morte. 

Uqbar, eis uma pasta para arrolar as pessoas que me fazem cultivar sentimento de reverência. Lá estão inclusive pessoas de meu convívio atual. Reverenciar e amar sua grandeza não me ensinam nada, embora mestres consumados. Aqueles aprendizes que copiavam exasperadamente os manuscritos de seus mestres para, íntimos e contíguos à grandeza, sorvê-la instantaneamente, tornando-se, de repente, eles, mestres, detinham algo a mais. Meus gestos de copista não passam da mecânica estéril. 

Destaco, pois, a ação toda enquanto descartável, a maestria infértil, o porvir vacilante. A falta de consolo contorna sentimento de desprezo, inofensivo, é verdade, apenas a, cada vez mais, acentuar um amargor interno, quase que tangível. Este despeito me é de uma agressividade terrível.

Certa vez faziam votos, desejavam-me bons dias. Nada digo. Apenas meu desprezo  — que talvez transpareça; desprezo a isto, que não me apetece, de forma alguma. 

Ao meu amigo Wolfgang Amadeus Mozart

Embora esteja a música bem ao lado da alma, a falar sua língua, tenho a consciência de que só a literatura, com clarividência assustadora, dá as linhas de minha vida. Vi meu infortúnio no de André de O Coruja. A música guia o sentimento, mas estes assomos espirituais de grandeza e sensibilidade são castelos no ar, a rigor. A vida são minhas circunstâncias, rotinas, contextos.  Vêm-me à memória, assim, aquelas passagens intrincadas de O Castelo e, sobretudo, de Amerika. 

Basicamente, Karl trabalha de ascensorista, é espicaçado pela organização dos homens e pela vida a esta ligada. De repente, estará destruído, não sendo necessário final para isto — desaparecerá feito folha em meio aos desencadeamentos inextricáveis do porvir. Sim, mas isto não quer dizer que Kafka retrata um ambiente totalmente seco, ríspido, sem afeto e compaixão. Pelo contrário, nas frinchas de seu fado, lá estão a bondade e carinho ao Karl direcionados por sua chefe. Com zelo, o trata bem, quer lhe um futuro bom, sem nada em troca. Frinchas, porém: o desencadear lhe é incontornável, a queda, certa, debalde tudo o que se pode ter do bom e do belo.

Sempre fiz pouco caso das dedicatórias, sessão de agradecimentos, miniaturas de teses e dissertações, as via como mera hipocrisia, epígrafe a anteceder torrente de impessoalidade. Certa vez me encantei ao achar um livro na biblioteca da faculdade chamado “O meu mestre imaginário”. Fiquei decepcionado ao ver que, logo de dedicatória, havia a alusão ao Silviano Santiago, justamente, nas palavras do autor do texto, seu mestre. Ora, conversa fiada, afinal, se Silviano Santiago é mestre, então não é imaginário. Insuperável e genuína dedicatória é a do Murilo Mendes:

ao meu amigo

Wolfgang Amadeus Mozart 

Porém, acabei por fazer dedicatória. Em trabalho de menor relevância do que mesmo uma dissertação. Seja como for, não poderia não fazê-lo. É a uma pessoa de valor inestimável, cujo temperamento e entrega aplacam o absurdo do mundo, porque na sua grandeza o absurdo é vencido. Seria isto uma ilusão? Presumo que não se trata de trajeto fácil, destituído de arestas colossais de sofrimento, mas vejo em seu olhar o triunfo da vida.