E eis que tive minhas noites brancas. O sonhador, o original, tinha então a mesma idade, vinte e sete. As diferenças foram superficiais, sinais dos tempos, ele pôde sentir a realidade acareada, enquanto em meu caso foi forjada uma trilha remota, por mensagens.
Há dois filmes inspirados em Noites brancas. Um de Luchino Visconti, outro de Robert Bresson. Este encontro de mestres consumados, contudo, a rigor, não gera grande coisa. Ou melhor, são obras inconvenientes, se se foca no cerne da obra de verdade, porque é um estado de sentir com peso de perpetuidade amaldiçoada e velada, e tem de tenacidade e inflexão quanto tem de fragilidade.
Noites brancas. Na verdade, talvez as diferenças tenham sido maiores. Não, emendo: simplesmente não parei para notar as noites, não olhei o céu, apenas prosseguia com os movimentos cotidianos. Mas ao mesmo tempo havia, podia sentir, uma atmosfera diferente e que me era nova. E, entre longos e espaçados intervalos de angústia e ansiedade, de caminhar sem propósito, vivi noites brancas.
No tombar do momento em que pude avistar, do subsolo, a luz, se formou o patético de um milagre natimorto. O devanear de sempre já não pode ser, e o que eram longos e espaçados intervalos passam a ser uma planície árida e sem horizonte, talvez não de todo desconhecida há muito, mas agora a ter outro peso.
Era mais um fim de carnaval. No trabalho, havia expectativa de mudança de prédio, de mudança de minha posição também. Quanto ao local e prédio novos, um aborrecimento, sem dúvida, afinal implicaria mudança no errar diário entre e pela cidade, ainda assim, um aborrecimento contornável. Quanto ao cargo, a mudança me traria, sem dúvida, um pouco de sossego, embora o futuro ainda fosse uma imagem dentro da angústia fermentada. Seja como for, essas mudanças não tinham nada de especial. Até que comecei a conversar com uma mulher. Tinha ela a mesma idade que eu, vivia na mesma cidade, trabalhava mais ou menos na mesma área, sua trajetória até ali se parecia, morava também com a avó, confessava incertezas em relação ao futuro. A princípio, aquilo se deu de maneira um tanto banal, feito uma bravata qualquer. Depois de uma semana de conversa esquecida por dias, começaram as noites brancas.
E conversamos diariamente por duas semanas, ela respondia no dia seguinte ou no período seguinte, eu sentia o quanto essa troca, sem um porquê, transcorria de maneira franca, humana e sensível, não como um jogo. A um só tempo de maneira franca, humana e sensível e sem um porquê pois eu não podia ignorar o contexto de tudo aquilo, e via a sua imagem, se remexiam em mim sentimentos contraditórios. Ela tinha um sorriso largo, o semblante exprimia saúde, desembaraço, alegria e vitalidade. Quando não estava a sorrir, podia ser observado, nos gestos da boca, mãos e olhos, para além de seus traços retos, finos e delicados e de seu busto levemente salpicado, o desenhar de certa bravura.
Muito dissemos um ao outro. De minha parte busquei depurar minhas falas da incontornável tendência de literato, e embora aquilo não transcorresse como um jogo, não deixava de me causar inquietação, por seu caráter irreal, e por isso provavelmente em minhas palavras havia um excesso inconveniente de pensar consciencioso.
Ela me disse que não abandonaria jamais a avó e que o mundo odeia idosos. Ela me disse que preferia caminhar, ouvindo as vozes da própria cabeça, a entrar no ambiente de academia. Ela me disse que gostava de ver a vida acontecendo. Ela me disse que relógio era somente para ver as horas. Ela me disse ver coisas boas feitas que melhoraram a cidade, como a reforma da biblioteca municipal, parques, o borboletário. Ela me disse o quanto desgostava das concessões e privatizações do que era público. Ela me disse o quanto acompanhava esportes. Ela me disse que, se tivesse me conhecido antes, iria rir de mim pelo rebaixamento do Santos. Ela me contou em linhas gerais a sua trajetória até ali. Certa vez, ela me pediu desculpas pelo sumiço de um dia, citou vagamente problemas pessoais, citou a correria cotidiana. Na noite final, ela pronunciou meu nome, emitindo o som do c.
E ela me respondeu certas vezes justamente quando eu estava nos momentos mais angustiantes em meio aos lapsos, e em todas as vezes seu retorno era uma boa nova, embora significasse também que, dali a pouco, haveria de enfrentar novamente o vazio, com suas especulações sempre tão severas.
Minhas noites brancas foram uma azáfama de sentimentos contraditórios, é verdade, mas com a vida suspensa, flutuante sobre o cinza diário. Estalou de maneira violenta a percepção de que tudo acabava por se desviar, cair na estupidez vulgar de tudo o mais, mas já não era pela voz daquelas noites brancas.
Há muito buscava dissimular, escapar dos encadeamentos cinzas diários da realidade, inspirado pela reminiscência da grandeza, do sublime. De início, me inquietava sentir o alcance e expressão de uma sonata para piano tardia de Beethoven, de uma sinfonia como a Júpiter de Mozart, sua grandeza, sua perfeição, enquanto tudo o mais era tão acanhado, vulgar, sem acabamento algum. Depois, sentia que aquela grandeza não é fruto de confrontação, tampouco de fuga, mas justamente assim se transformou pela própria grandeza do que é viver, superando a vida pela vida. O altar da arte, o sacrifício, a transformação, seja como for, talvez no fundo esta grandeza me assuste, e me abandono entre a entrega abnegada e a letargia.
Enquanto isso, ocorreu a mudança de prédio do trabalho, a nomeação para o cargo, porém, não, foi sinalizado que, após um mês de férias, viria a ocorrer, no prédio novo do serviço, fico no décimo terceiro andar, me habituei logo a subir até lá pelas escadas, no outro prédio, as escadas eram esguias, povoadas de gente, ia em pouco tempo do térreo ao quinto, agora, há um espaço bem largo, alto, vazio, opaco, silencioso, com resquícios de pó de construção, não faço tanto esforço, não canso, não demoro demasiadamente e, quando vejo o papel colocado na parede a indicar meu andar, genuinamente desejo continuar a subir, sem propósito algum, sem fecho, no horário de almoço, ando sem destino, a cabeça vazia, em minha mesa, em frente à tela, também retorço o vazio. Vieram então as férias.